O Casarão do Comendador

O Casarão em foto anterior a 1895.

A casa do Comendador não era uma residência particular como a entendemos. Era também um estabelecimento comercial de negócios, um espaço de comunicações, o ponto de encontro das atividades profissionais do comerciante com a cidade.

Implantada nos limites do terreno, ocupava duas esquinas, entre a Rua do Comércio, de um lado, e a margem do córrego do Lenheiro, de outro, onde havia um chafariz abastecido por um aqueduto (ambos demolidos em 1895).

A fachada principal, de frente para o largo – onde estacionavam as tropas que realizavam o comércio entre províncias – era onde se encontrava o armazém de secos e molhados, no térreo da propriedade. A entrada da residência, com sua porta de visitas, situava-se na Rua do Comércio, enquanto os fundos se voltavam para o Córrego do Lenheiro.

A partir de 1875, os herdeiros do Comendador decidiram pela locação do imóvel. O prédio vai sendo repassado aos filhos e netos, até que, em 1926, quando a casa pertence a Galdino Mourão de Araújo, neto do Comendador, ela é vendida ao Coronel Gabriel Felisbino de Resende, ficando em sua família até 1946, quando foi vendida à Companhia Interestadual de Melhoramentos e Obras S.A. (CIMOSA), que iniciou sua demolição para a construção de um hotel.

O prédio foi tombado no mesmo ano e desapropriado em 1947, quando começou a ser restaurado para receber, durante a década de 1950, o acervo do que seria o Museu Regional de São João del-Rei.

O Construtor

Cidadão de prestígio na Província de Minas Gerais durante o século XIX, o Comendador João Antônio da Silva Mourão (1806-1866) prosperou como comerciante e homem de negócios num momento em que a Vila de São João Del-Rei tinha se enriquecido pela sua posição geográfica estratégica no circuito entre o sul e o Oeste de Minas, se tornando um importante personagem sanjoanense durante o período.

Filho de mãe solteira, o Comendador ainda pôde acumular bens herdados de sua mãe e de suas duas primeiras esposas, que reforçaram sua situação na elite mercantil sanjoanense, conquistando considerável prestígio social em função de sua riqueza.

Além das atividades comerciais, Mourão fazia empréstimos a juros onde muitas vezes somava-se aos seus bens as propriedades de seus devedores. Dessa maneira foi afirmando sua influência e poder na cidade. Esta trajetória resultou em acúmulo de capital que teve como um dos maiores destinos de investimento a sua residência, localizada no centro da cidade, no Largo do Tamandaré.

Mourão terminou a construção de sua casa, provavelmente, em 1859, data que constava em sua fachada principal, antes da parcial demolição do prédio. O Comendador veio a falecer pouco mais de seis anos depois, em 1866, e o casarão permaneceu como residência de sua família até 1875.

Apreciador do requinte, quando o Comentador, já em idade avançada, opta por construir o grande edifício da chamada Praça do Tamandaré num local de grande centralidade e visibilidade dentro da estrutura urbana da cidade. Além do conforto que a moradia traria, investiu nitidamente numa demonstração pública de distinção social, própria dos homens ricos do seu tempo. Segundo Castanheira Flores (2009), o edifício é fruto direto do contato do Comendador com a renovação do gosto arquitetônico que a Missão Francesa trouxe ao Brasil. Porém a estética é somada a preferência da tradição construtiva colonial ainda presente nas construções civis da época.

A Casa do Comendador também foi um símbolo de sua riqueza e poder, impondo-se como uma das mais sofisticadas residências da cidade. Destacavam-se entre as demais tanto pela largueza de espaço quanto pela posição privilegiada de esquina. Era também valorizada pela abertura de uma praça e por estar ao lado do córrego. Os grandes vãos das janelas envidraçadas, de onde se podia observar a cidade e admirar a vista dos arredores, completavam a impressão de solidez e dignidade.

Estrutura

A construção se implantava nos limites do terreno e tinha paredes grossas, com térreo em alvenaria, pedra e barro, para suportar o peso das estruturas superiores. Nos outros pavimentos utilizou-se taipa de sebe e, por fim, a cobertura com quatro águas, que ultrapassava a cornija formando o beiral.

Com três pavimentos, era organizada verticalmente em torno da escada: o térreo era direcionado aos negócios, o primeiro e segundo andar para a família. O térreo se dividia entre a área de trabalho nos cômodos da frente, enquanto os fundos eram utilizados para a acomodação de escravos. Por fim, o pátio onde abrigavam os animais e localizava-se a “casinha”. Neste pátio havia um cômodo com um poço.

No primeiro andar se localizava a habitação propriamente dita, com um grande salão social voltado para a praça e diversas divisões de quartos, ante-câmeras, salas de jantar e alcovas. O segundo andar, menor que o primeiro, era onde provavelmente estavam os aposentos do Comendador, além de possuir um outro salão para a permanência de mulheres e crianças.

Baseando-se no inventário do Comendador, é possível que alguns cômodos eram destinados à sala de música, sala de jogos, costura etc. As alcovas ligadas à sala de jantar serviam para guardar faqueiros, porcelanas e outros objetos de mesa. O mobiliário sofisticado tinha aparência e materiais nobres, e a decoração contava com quadros e retratos pintados por artistas estrangeiros contratados. Pode-se ainda destacar a prata nos serviços de mesa, porcelanas “ricas”, cristais, móveis com encosto e assento em palhinha, piano, “camas francesas”, espelhos com moldura.

Aos fundos, onde hoje temos um terraço, havia uma construção de pavimento em forma de puxado que poderia ter sido construída para funcionar como cozinha. Apesar de se situar fora do retângulo da casa, ficava ao seu lado, mantendo uma comunicação muito fácil e direta com a sala de jantar. Também se comunicava com o pátio através de uma escada externa, que era sua fonte de abastecimento.

De modo geral, o casarão repete e conserva as mesmas características das construções do período colonial que avançaram até o século XIX, onde as condições de vida econômico-social se baseavam no trabalho escravo assegurando a continuidade dos esquemas de produção e utilização dessa arquitetura.

As variações relacionadas ao padrão arquitetônico colonial estão presente nas fachadas, porém ficam restritas aos elementos decorativos, que não são o suficiente para romper com os padrões usuais. Na fachada principal apresentava os mesmos elementos que a fachada lateral voltada para a rua, mas é completamente diferente da voltada para o córrego.

Podemos considerar então que a casa seja um tipo de residência implantada e condicionada dentro de um sistema construtivo tradicional. As discretas modificações ficaram basicamente restritas às fachadas que tem particularidades de acabamento com ornatos rococó em relevo, nos frisos e cunhais que representavam uma renovação, dentro dos velhos moldes construtivos.

Demolição e reforma

Em 1946, o sobrado foi vendido à CIMOSA, que pretendia usar o terreno para a construção de um hotel de 12 andares. Contrariando as determinações de proibições do SPHAN, a empreiteira deu início à demolição do prédio, derrubando suas paredes internas e destruindo totalmente o segundo andar da construção.

No mesmo ano, com a desapropriação do prédio, a demolição foi embargada o SPHAN deu início ao processo de restauração do casarão, já com a intenção de transformá-lo em um museu.

As obras do prédio se desenvolveram sob a orientação de vários dos arquitetos empregados no SPHAN, tendo Lúcio Costa como principal responsável. O mesmo Lúcio Costa seria, dez anos depois, o paisagista responsável pelo desenho do Plano Piloto de Brasília e trabalharia ao lado de Oscar Niemeyer na construção da nova capital.

O processo de reforma se deu em meio a muitos problemas. Não havia como manter a composição das paredes internas, o que tornou impossível a reconstituição dos ambientes originais. Optou-se, então por outra concepção de restauro na qual os cômodos foram completamente alterados e transformados em grandes salões expositivos.

Já no restauro das fachadas, abandonou-se maiores preocupações com os seus detalhes, sendo mais importante a manutenção das características daquela tipologia de construção e não dos elementos decorativos que a particularizavam.

Portanto, o princípio que norteou a restauração não foi o de reconstituir o casarão tal qual existia na época do Comendador (ou em alguma etapa posterior), mas sim recriá-lo como um modelo exemplar dos princípios da “arquitetura autêntica do período colonial”.

Enquanto o exterior é relativamente fiel à forma original, o interior segue outros princípios, se destacando por sua concepção moderna. As dificuldades de reconstituição levaram à simplificação da obra, criando uma oportunidade para Lúcio Costa de criar amplos espaços no seu interior, livres de subdivisões. Esta nova espacialidade trazida pelo restauro fez com que o museu adotasse um espaço expositivo, mais próximo da “neutralidade” moderna do que da “cenográfica”.

O principal interesse do SPHAN, levando-se em consideração as dificuldades e impossibilidades do projeto inicial, permaneceu sendo a preservação de um exemplar paradigmático de um momento importante da evolução de nossa arquitetura. Tornou-se secundário o caráter social da residência ou o seu papel naquele momento da vida urbana. Em primeiro lugar se passou a vir o objeto arquitetônico e seu papel na formação da arquitetura no Brasil.