Semana do Patrimônio

O Museu como guardião do patrimônio cultural

A formação do Museu Regional, seus idealizadores e o contexto de formação do acervo.

publicado: 04/03/2020 12h49, última modificação: 02/04/2020 09h38

O Museu Regional de São João del-Rei foi oficialmente aberto ao público em 1963, mas sua história começa mais de uma década antes. O Casarão do Comendador Mourão, construído em 1859 e tombado como patrimônio arquitetônico em 1946, possui uma história de embates políticos e econômicos que marcaram a cidade.

Após ter sido parcialmente demolido na década de 1940, o sobrado foi finalmente desapropriado e ficou sob responsabilidade da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (a DPHAN, atual IPHAN). A partir daí, o órgão federal daria início a um grande processo de reforma e restauração do prédio, que se seguiria ao longo dos anos de 1950.

Paralelamente ao momento de embate sobre a preservação deste casarão, outra discussão tomava conta das páginas dos jornais são-joanenses: a possível criação do primeiro museu da cidade e qual seria a sua localização.

A formação do museu

Ralf Flôres, que dedicou seu doutorado à história do Museu Regional, situação a idealização do museu ainda na década de 1940. Segundo ele, ainda em 1946, enquanto o Casarão do Comendador era aos poucos demolido, políticos mineiros da União Democrática Nacional (UDN) encaminharam um requerimento à Assembleia Nacional Constituinte. O documento solicitava que o Ministério da Educação e Saúde Pública fundasse um museu histórico em São João del-Rei, sob responsabilidade da DPHAN.

Esse foi o primeiro passo para formação de uma instituição museológica na cidade, mas o modo como foi idealizado não agradou a oposição – pelo menos é o que dizia a imprensa. Flôres cita o jornal ‘O Correio’, de junho daquele ano, que dizia que “a população inteira recebeu desapontada a iniciativa dos deputados udenistas […] sugerindo a criação de um museu regional, no local onde outrora existiu um velho casarão, hoje reduzido a escombros”.

A campanha pela demolição da casa continuava e a possibilidade de transformá-la em um museu acirrou ainda mais os ânimos dos interessados no prédio.

Em setembro de 1946, o diretor geral da DPHAN, o advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade, ao solicitar autorização de restauro do prédio ao Ministro da Educação e Saúde Pública, também comunicou a decisão de que o imóvel seria adaptado para a instalação de um museu “semelhante aos que foram organizados em Ouro Preto e Sabará”.

Nas palavras do diretor, com a criação de uma “instituição cultural de manifesta utilidade pública”, a população de São João del-Rei talvez passasse a considerar “com mais simpatia e melhor compreensão a ação desta Diretoria em prol da preservação do patrimônio histórico e artístico daquela gloriosa cidade”.

Por fim, prevaleceu a vontade da DPHAN e, depois de desapropriado, a restauração que se seguiu já previa ali o funcionamento de um museu.

A influência de Lúcio Costa

O processo de restauração do Casarão do Comendador Mourão passou pelas mãos de vários arquitetos da DPHAN. Entre eles, estava Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa, que, alguns anos depois, seria o principal responsável pelo projeto urbano da cidade de Brasília.

Lúcio Costa foi pesquisador da arquitetura nacional e especialista em construções coloniais. Ele via São João del-Rei como “uma cidade depositária de elementos da arquitetura tradicional brasileira”. Dentro deste olhar purista do arquiteto, a cidade era algo muito maior e importante do que ela mesma. Nas palavras de Ralf Flôres, Lúcio Costa considerava que o conjunto urbano são-joanense estava inserido na “imensa constelação da formação da arquitetura moderna brasileira”. 

Ao assumir os trabalhos no sobrado do Largo Tamandaré, Lúcio Costa planejava reconstruir o interior da casa seguindo sua planta original, com divisões de quartos, alcovas, salas e corredores. Sua visão de “museu casa” visava recriar cenários da época em que o sobrado fora construído. O projeto, no entanto, mostrou-se inviável e o arquiteto optou por outro formato de museu.

No lugar dos diversos cômodos, a proposta trazia salões amplos, quase contínuos: uma visão “moderna” inserida em uma construção quase centenária. A nova divisão espacial daria outra identidade ao futuro museu, com espaços expositivos mais próximos da “neutralidade moderna” do que da “cenografia”

No entanto, o exterior do imóvel manteve ao máximo suas características originais, valorizando aquilo que Lúcio Costa considerava um exemplar da tradicional arquitetura brasileira, com suas sequências de portas e ornamentos de fachada.

Alguns dos ornamentos, infelizmente, se perderam durante a demolição, principalmente no último pavimento, que possuía relevos sobre as janelas centrais.

O gradil das sacadas também teve de ser todo refeito. As grades originais já haviam sido vendidas antes da desapropriação do prédio e não puderam ser recuperadas. Ainda hoje, as grades originais podem ser vistas ornamentando outras casas da cidade.

O acervo

O acervo começou a ser adquirido antes mesmo do fim da restauração do prédio, ainda em 1952. Lúcio Costa sugeria que as peças tivessem ligação com o período em que o sobrado fora construído ou que tivessem o estilo daquela época.

A pesar da proposta se basear em um recorte bem definido de tempo e estilo, o processo de aquisição mostrou-se conturbado e a coleção ganhou características variadas, abrangendo obras não apenas do período imperial, mas também do colonial.

Peças de arte sacra, elementos arquitetônicos, móveis, utensílios domésticos, instrumentos de trabalho e outros objetos compõem o acervo original, que continua sendo acrescido de outras peças.

A restauração foi concluída em 1958, mas o Museu Regional de São João del-Rei só foi oficialmente aberto ao público em 1963, sob a direção do Monsenhor José Maria Fernandes.

Somado ao conjunto arquitetônico da cidade, tombado em 1938, o Museu Regional de São João del-Rei com seu significativo acervo constituído de bens simbólicos do patrimônio da cultura nacional, vem cumprindo a sua missão de preservar, pesquisar, documentar e comunicar a memória de São João del-Rei em diálogo com a memória regional e nacional.

FONTES CONSULTADAS:

Ofício 1.310, de 4 de setembro de 1946. Processo 80.308/46 (DPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade).

São João del-Rei: Tensões e Conflitos entre o Passado e o Progresso (dissertação de mestrado de Raf. J. C. Flôres, 2007).

A Casa do Comendador João Antonio da Silva Mourão atual Museu Regional de São João del-Rei (Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil de Til Pestana, 1990).