Há 100 anos, em 1924, a Caravana Modernista passava por Minas Gerais em uma “redescoberta” do Brasil, que anos depois influenciaria a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A história iniciou-se alguns anos antes, em 1919, quando Mário de Andrade visitou o poeta mineiro simbolista Alphonsus de Guimarães, em Mariana. Após esse contato com as terras mineiras e com o intuito de conhecer mais sobre a cultura das cidades históricas, Mário de Andrade organizou a famosa caravana para a região.
Além do poeta, o grupo contava com a presença de Tarsila do Amaral, artista e pintora brasileira referência na produção de obras nacionalistas, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, escritores brasileiros, Blaise Cendrars, romancista suíço e francês que chegava ao país pela primeira vez, René Thiollier, advogado e escritor brasileiro, Olívia Guedes Penteado, conhecida pelo apoio às artes, ao movimento modernista e sufragista, e Gofredo Teles, professor, escritor e político brasileiro.
A Caravana Modernista passou por São João del-Rei, Tiradentes, Ouro Preto e Congonhas. Em São João, o grupo viajante ficou impactado com as manifestações culturais da Semana Santa que inspirou as ideias a respeito do patrimônio cultural e imaterial, em Congonhas veio o encontro com as obras de Aleijadinho e na cidade de Ouro Preto, o grupo visitou os principais monumentos e construções arquitetônicas.
Em São João del-Rei, hospedados no Hotel Macedo, os artistas propiciaram um acontecimento curioso. No livro de registros de visitantes, o grupo chegou a escrever os nomes reais, mas forneceram algumas outras informações satíricas, como copiado por Mário de Andrade para suas anotações.
“D. Olívia Guedes Penteado, solteira, fotógrafa, inglesa, Londres. D. Tarsila do Amaral, solteira, dentista, americana, Chicago. Dr. René Thiollier, casado, pianista, russo, Rio. Blaise Cendrars, solteiro, violinista, alemão, Berlin. Mário de Andrade, solteiro, fazendeiro, negro, Bahia. Oswald de Andrade Filho, solteiro, escritor, suíço” (Arquivo Mario de Andrade – IEB/USP)
A partir das experiências vivenciadas na região, os artistas registraram memórias, como os esboços de desenhos feitos por Tarsila, os registros fotográficos de Mário de Andrade e os poemas escritos por Oswald de Andrade, publicados no livro “Pau-Brasil”, em 1925.
Na época, inclusive, o Jornal “A Tribuna”, de São João del-Rei, publicou uma matéria sobre a visita ilustre dos intelectuais. Em um dos trechos é possível ler que “esta cidade, hospedando gente de tão alta estipe mental, sente-se vaidosa, desvanecida, principalmente porque sairam elles daqui encantados, levando a melhor impressão, croquis e photographias, para contar lá fora, nas folhas paulistas e francezas, as nossas grandezas.”
Esse “novo Brasil” descoberto em Minas Gerais influenciou a criação de projetos e instituições fundamentais para a preservação do patrimônio. Ainda na época da viagem, Dona Olívia Guedes fundou as bases para a criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil.
A Constituição de 1934 apresentou uma base para a proteção do patrimônio nacional, a partir do artigo 148 do capítulo II, afirmando que “cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.”
Neste período iniciou-se também os estudos para a construção de um projeto de lei federal sobre o tema, com envolvimento de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade.
Com todas as manifestações artísticas, históricas, arquitetônicas e culturais vistas em Minas Gerais, os modernistas ajudaram a idealizar, então, o que viria a ser o IPHAN, nos dias atuais. O anteprojeto apresentado por Mário de Andrade para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN) pretendia uma preservação total das manifestações populares do país, incluindo lendas, superstições e cantigas. O texto não foi aprovado exatamente como o proposto, mas em 1937 o SPHAN transformou-se em realidade e teve como primeiro diretor o mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Rodrigo Melo, inclusive, possui uma ligação muito especial com o Museu Regional de São João del-Rei. Ele foi um dos grandes responsáveis pela criação da instituição museológica na cidade, em 1963, e na inauguração da exposição “Centenário do Nascimento de Gastão da Cunha” proferiu um discurso em homenagem ao são-joanense.
Exposição virtual – Gastão da Cunha: 160 anos do diplomata são-joanense
A instituição criada na década de 30 passou a receber o nome definitivo de IPHAN em 1994, após manifestações contrárias à adoção do nome Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), com a estrutura regimental sendo publicado em 1998. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tornou-se então uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura.
Responsável pela preservação e conservação do patrimônio cultural brasileiro, tanto imaterial quanto material, o IPHAN atua junto as mais diversas formas de manifestações. De acordo com a Constituição Federal, “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
Referências:
SALA, Dalton. Mário de Andrade e o Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista Inst. Est. Bras., SP, 31:19-26, 1990.
Estado de Minas – https://www.em.com.br/cultura/2024/03/6812296-o-grupo-de-intelectuais-que-comecou-por-minas-a-redescobrir-a-arte-no-pais.html
Revista Ciência e Cultura – https://revistacienciaecultura.org.br/?artigos=minas-gerais-modernidade-e-cosmopolitismo-mario-de-andrade-os-mineiros-e-a-reinvencao-do-brasil
O antropófago Oswald de Andrade e a preservação dos patrimônio: um “devorador” de mitos? https://www.redalyc.org/journal/273/27358485008/html/
Constituição Federal Brasileiro
Jornal A Tribuna – S. João-del-Rey (Estado de Minas-Geraes), 24 de abril de 1924