Por Lucas Rodrigues
Historiador e pesquisador de arte sacra mineira – séculos XVIII e XIX.
Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em História da Arte e Patrimônio
da Universidade Federal de São João del-Rei.
Nas palavras do poeta e pesquisador do barroco mineiro Affonso Ávila, a história de Minas Gerais têm seu início com a entrada das bandeiras no território aurífero. Junto aos aventureiros em busca das riquezas da terra, um pequeno e delicado objeto de fé os acompanhava: o oratório. Artefato da fé e devoção do povo mineiro, o oratório doméstico figura como um elemento indissociável da moradia urbana e rural.
A história do objeto é longa e nos chega pelo ultramar através de Portugal. Em primeiro lugar, o nicho de oração como sede da religiosidade familiar e suporte para representações sagradas é encontrada primeiramente na Roma Antiga, no uso do lararium. O lararium em Pompéia, na Casa dos Vetti [fig. 1] em sua forma e iconografia, remonta ao templo romano enquanto a casa do deus. Disso, observamos o início da tendência que moldará toda a religiosidade europeia através da arte: a privatização da fé e a transferência do culto público para o ambiente doméstico. Isso não significa que há uma clara e distinta separação entre religiosidade pública e privada, mas, religiosidades que se complementam. No cristianismo e na arte religiosa a tendência se aprofunda ainda mais.
Será na Idade Média que o artefato que conhecemos comumente como oratório adquire sua primeira forma. Os trípticos, quadros tripartidos, são utilizados como retábulos nas igrejas cristãs no período do Gótico. Tais trípticos, geralmente, eram compostos por uma pintura central (representando uma invocação de caráter mais individualizado) e ladeada à esquerda e à direita por paisagens ou outras invocações, sendo interpretadas como ‘devoções auxiliares’. Tais quadros laterais serviam como ‘portinhas’ que podiam ser fechadas, ocultando o painel principal. Curioso notar que tais ‘portas’, quando cerradas, podiam também conter pinturas de conteúdo sagrado ou profano. Os trípticos, ao longo do tempo, foram saindo do predominante campo da pintura com suporte em madeira para o universo da talha. É em Portugal, no período da arte Manuelina (que coincide com o gótico internacional francês em sua última etapa, o flamboyant) que o oratório doméstico adquire forma autônoma.
Em ambiente lusitano, os oratórios (enquanto objetos do cotidiano) advém dos trípticos utilizados na ornamentação das igrejas, como vimos. Progressivamente, aproveitando a composição tripartida dos retábulos trípticos, adquire a forma de um pequeno armário. Porém, será somente no século XVII que o oratório, tal como o conhecemos, surge. Com a consagração e ênfase do culto aos santos, defendido pelo Concílio de Trento no século XVI, unido à linguagem artística do barroco religioso, os oratórios se tornam objetos indissociáveis do fervor devocional do povo que depositavam, através das orações cotidianas, esperança nos seus ‘amigos celestes’ no duro enfrentamento dos dissabores da vida. Essa dinâmica devocional é transplantada para a América Portuguesa, e em Minas no século XVIII a prática se consagra.
A arte dos oratórios domésticos em Minas Gerais, assim como a dinâmica devocional que se realiza diante deles, se constitui como herança cultural do Império Português. Com ela, foram igualmente importados o aparato social de Antigo Regime em vigência. Tendo isso em mente, o oratório doméstico figura como um objeto utilizado e comportado no lar de famílias abastadas, demonstrando, através do oratório, sua posição hierárquica na sociedade e seu privilégio. O oratório em Minas Gerais, assim como em todo a colônia, também adquiriu conotações de concorrência com as sedes oficiais de culto católico, os templos. Porém, o oratório (quando utilizado como suporte para a Missa dominical) também pode ser considerado complementar ao culto, tendo em vista a vastidão do território mineiro e a ausência de templos e sedes de culto públicas. O oratório, portanto, adquire um valor simbólico e também econômico, sendo mencionado inúmeras vezes em inventários e testamentos post-mortem como bens indissociáveis da moradia e legados como herança.
Em São João del-Rei, a arte dos oratórios domésticos também é atestado através dos inventários locais e dos acervos particulares e musealisados. O acervo do Museu Regional de São João del-Rei é composto por oratórios dos séculos XVIII e XIX, tendo várias tipologias que encerravam, sobretudo em sua forma estilística, variados usos. Destacamos, primeiro, o oratório da Paixão de Cristo [fig. 2]. Sua forma, de armário para guarda de representações sagradas (sobretudo imaginária) faz menção em sua iconografia aos momentos da paixão de Cristo, levando o fiel a meditar os momentos cruciais da história sagrada. A devoção à paixão de Cristo ressoa nos festejos expiatórios da Quaresma e Semana Santa, populares em São João del-Rei através das Via-Sacras, da Festa de Passos e da ênfase ao martírio de Cristo durante o Tríduo Pascal. Destacamos, também, o oratório-lapinha [fig. 3] peça muito representativa da arte religiosa em Minas Gerais. Sua tipologia, dita lapinha (em referência ao ciclo iconográfico da Natividade de Jesus Cristo) representa a utilização da linguagem do rococó religioso para artefatos da cultura popular. Se os oratórios de linguagem barroca oferecem uma talha e pintura elaboradas, com peso visual, dramaticidade e composição em tons ocres, os oratórios de linguagem rococó ao contrário, apresentam profusão de brancos, azuis celestes, verdes e douramentos delicados. Falando de tipologia, não podemos deixar de mencionar que os oratórios também adquiriram forma autônoma na colônia, sendo igualmente utilizado como objeto de devoção pelos negros escravos e libertos, possuindo linguagem própria nos igualmente complexos e notáveis oratórios ‘afro-brasileiros’.
Nisso, observamos apenas uma pequena parte da importância que os oratórios domésticos tiveram na história social, religiosa e artística da Minas colonial. O oratório concentra, em sua singela forma e potente simbolismo, a própria história do Brasil. Vemos através do seu uso a história das devoções, da religiosidade católica, as relações de gênero, raça, dos debates teológicos e também da urbanização em Minas Gerais. Trata-se de um objeto com hipersignificação. Devoção e arte unidas e representadas numa peça de mobiliário sacro, representação fiel da dinâmica religiosa de homens e mulheres que ressoam ainda hoje na contemporaneidade.
BIBLIOGRAFIA
ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco mineiro: glossário de arquitetura e ornamentação. Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro, 1979.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MATA, Sérgio da. Chão de Deus – Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlin: Wiss, Verl. 2002
RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Alameda, 2014.